O que é afrocentricidade?

AFROFUTURO
4 min readJul 7, 2018

O processo de escrita deste texto começou ao digitar no Google a pergunta que titula esta reflexão e não encontrar nenhuma resposta simples em artigo de rápida leitura. Estes pensamentos talvez sejam os mais importantes desde que me “tornei negra”, parafraseando Neuza Santos Souza. Todo o processo de descobrir o que quer dizer ser preto em um país que somente há 130 anos vê pessoas pretas como seres humanos perante a lei é denso e bastante doloroso. Ao longo deste tempo tive contato com diversos tipos de teorias sociológicas, antropológicas e históricas que tentam dar conta da realidade que vivemos enquanto pretos.

Conheci a Afrocentricidade há cerca de um ano e, assim que comecei a entender o que o conceito queria dizer, percebi que nele contém um fator inédito relativo a todas as outras teorias que eu conhecia, com um potencial transformador enorme: pela primeira vez me vi diante de um olhar que colocava pessoas pretas no centro do discurso, não mais como margem. Uma forma de ver e analisar o mundo tendo a perspectiva de pessoas pretas africanas, do continente e diáspora, como centro.

Na realidade brasileira, a população negra totaliza 54% da população e este fato torna qualquer tipo de análise que desconsidere raça, incompleta. O que estou dizendo é que independente de falarmos de economia, história, filosofia ou linguística, se não considerarmos a importância da cultura africana e a perspectiva dos sujeitos que carregam essa cultura em seus corpos e em sua ancestralidade, não teremos uma análise fiel a esta realidade. O apagamento da importância da África e do legado histórico das pessoas pretas — no Brasil e ao redor do mundo — é um processo longo que fortaleceu o que chamamos de supremacia branca na civilização ocidental. De diversas formas, africanos foram destituídos de valor e lugar de existência na historiografia eurocentrada. Faraós de narizes quebrados, um Egito embranquecido, pessoas negras importantes na história brasileira, como André Rebouças e Luiz Gama, apagadas dos livros, a história dos povos africanos invisibilizada e sequer mencionada em currículos escolares… O que então seria oposto desta visão incompleta de mundo que obliterou a importância e até mesmo a existência da África e dos africanos?

Estátuas egípcias com narizes quebrados
Império do Gana
Império do Mali

Molefi Asante, professor e pesquisador africano nascido nos Estados Unidos, é reconhecido por ter cunhado a teoria e sistematizado o conhecimento que já estava presente na obra de diversos autores negros pan-africanistas. Asante elevou os estudos de Afrocentricidade ao nível de paradigma acadêmico que influenciou de forma decisiva os estudos africanos ao redor do mundo.

“A Afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômeno atuando sobre a sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos.” (ASANTE, 2009, p. 93)

Molefi Kete Asante

Para Asante, os sujeitos africanos (do continente e diáspora) foram descentrados pela perspectiva eurocêntrica que avançou com o processo de colonização. Ou seja, um sujeito está descentrado sempre que se posicionar a partir de uma experiência que não está alicerçada em sua própria história. Dois conceitos centrais da Afrocentricidade são as ideias de conscientização e agência. A conscientização é o aspecto que orienta os seres humanos no conhecimento sobre as opressões que sofrem, como também sobre as vias possíveis de libertação através de sua agência. Sendo a agência, “a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana.” (ASANTE, 2009, p.94) Para o autor, é necessário que o sujeito africano, através da conscientização, deixe a posição de dependência (ou desagência) para posicionar-se como agente de transformação para si mesmo e para os povos africanos.

Para entender este descentramento é preciso levar em conta o que o autor chama de localização, que “no sentido afrocêntrico, refere-se ao lugar psicológico, cultural, histórico ou individual ocupado por uma pessoa em dado momento da história.” (ASANTE, 2009, p. 96)

Sendo assim, não faria sentido, por exemplo, falarmos, como africanos, sobre colonização partindo do ponto de vista de quem “descobriu” terras onde os povos africanos ou nativos já viviam. Esta narrativa estaria descentrada de nosso próprio ponto de vista da história.

A importância de uma teoria que oferece ao povo preto uma perspectiva própria de mundo me parece relevante o suficiente para pensar que qualquer projeção de futuro que façamos requer que aspiremos por um lugar essencialmente nosso no presente. Como projetar um futuro se não sabemos quem somos, de onde viemos e pra onde queremos ir?

Me lembro que a primeira coisa que me fez me questionar de onde eu vim foi a explicação de uma professora de história durante o ensino fundamental de que nós, pretos, viemos de navios negreiros, como se toda nossa existência estivesse limitada à isso. Eu me perguntei de onde esses tais navios vinham e desde então essa pergunta me impulsionou a buscar respostas. Espero que você também busque e se (re)encontre.

// Texto por Morena Mariah, filha de Osun, fundadora da @inovacolab e graduanda em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense.

Referência:

Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora (Coleção Sankofa — Livro 4) organizado por Elisa Larkin. Editora Selo Negro, 2009.

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