O desafio de uma construção utópica africana
Quando comecei a pesquisar sobre afrofuturismo uma das coisas que mais me chamou atenção foi a repetição de temas distópicos, principalmente na literatura pós-apocalíptica de diversos autores. Preciso confessar que fiquei incomodada e esta recorrência me despertou para a reflexão tema deste texto.
Utopia versus Distopia
Utopia, do grego “ou”, “não” ou prefixo de negação e “topos”, “lugar”, tem, como significado secundário, um lugar que não é no agora, mas que pode ser construído no futuro.
Utopia seria portanto a construção de um lugar futuro, idealizado, ainda não existente no presente. Distopia seria o oposto negativo de utopia, a antítese da possibilidade de construção futura. Uma realidade de destruição, onde todas as expectativas estão mortas.
A distopia africana é a própria realidade da diáspora forçada, forjada num processo de sequestro, escravização, colonização e genocídio que já dura mais de 300 anos no Brasil. Uma realidade de dor reforçada cotidianamente pelo racismo estrutural e estruturante entranhado no seio de uma sociedade cinicamente escravocrata.
Qual seria o uso de narrativas distópicas para o processo de reconstrução de autoestima e agência do povo africano ao redor do mundo? Em que uma narrativa pautada na destruição pode ajudar um povo subjugado pela colonização a se reerguer? Essas perguntas me fizeram rejeitar a ideia de distopia como uma possibilidade de futuro para africanos e africanas, da diáspora e do continente africano.
W. E. B. Du Bois (1973, p. 144) nos diz que os povos da África e da diáspora africana tem “uma grande mensagem […] para a humanidade” e que não devemos esquecer o(s) “método(s) que desenvolvemos para enfrentar a escravidão e lutar contra o preconceito, mas aprendê-los para que sirvam de instrução a nós mesmos e aos outros.”.
Num verdadeiro movimento de Sankofa - determinado pelo povo Akan como a capacidade de olhar para o passado para construir o futuro -, o desafio que se põe é o de construir narrativas que indiquem um caminho de retorno que pavimente a construção do que virá pela frente. Este movimento de retorno precisa estar pautado no acúmulo ancestral de conhecimentos africanos tendo como objetivo final a libertação, principalmente mental, do sequestro psicológico colonial que encarcerou as potencialidades do povo negro à imagens de miséria, destruição e tristeza. Imagens essas repetidas à exaustão pela mídia hegemônica com objetivo de minar as resistências psicológicas à subalternização do indivíduo negro.
Em A alma da gente negra, Du Bois advertiu para o perigo de confundir o povo negro com os problemas que ele enfrenta. Se as condições impostas pela distopia que vivem os africanos atualmente se confundem com seu próprio ser, o resultado é uma subjetividade condenada à escravidão, a confirmação de um futuro distópico desprovido de agência.
É preciso reivindicar a exaltação do legado das civilizações africanas, suas contribuições incalculáveis para a humanidade e honrar os feitos de africanos e africanas que construíram com suas trajetórias a história do povo negro sobre a Terra. Assim, será possível reconstruir utopias que acendam a vontade de criar o afrofuturo para a liberdade.
// Texto por Morena Mariah, africana da diáspora brasileira, integrante do Ciclo Mulherismo Afreekana e graduanda em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense.
Referências:
Afrocentricidade: Uma abordagem epistemológica inovadora — Coleção Sankofa 4 — Organização de Elisa Larkin Nascimento
https://afrocentricidade.files.wordpress.com/2016/04/as-almas-do-povo-negro-w-e-b-du-bois.pdf