Makandal: o revolucionário herbalista

AFROFUTURO
6 min readSep 27, 2018

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Makandal, sacerdote Vodu e líder revolucionário

A história da Revolução Haitiana pode ser contada através de seus principais revolucionários. Um dos primeiros a figurar entre os nomes mais conhecidos é Makandal, um africano vindo da região de Makanda, a principal aldeia do Reino de Loango, no antigo reino do Congo, que viveu no Haiti em meados do século XVIII. Ele pertencia a uma importante família congolesa que priorizou sua educação e, portanto, diferente da maioria dos africanos escravizados, Makandal podia ler e escrever. Filho de um importante chefe tribal, falava árabe fluentemente, tinha amplo conhecimento de escultura, sabia pintar e conhecia profundamente plantas e ervas medicinais.

Reino de Loango
Ilustração da Cidade de Loango
Mulheres de Loango

Makandal foi sequestrado de sua aldeia como refém aos 12 anos de idade e levado para a chamada “Costa dos Escravos”, na África Ocidental, que hoje compreende a região de Benim, Togo e Nigéria. De lá, foi levado à costa norte da Ilha de São Domingos, um dos maiores mercados de escravos do mundo na época. Foi vendido para um senhor da região de Limbé (Cap-Haitien), em uma das maiores propriedades de plantação de açúcar da ilha. Ele trabalhava nas atividades comuns de um africano escravizado no Haiti daquele tempo: plantando e colhendo cana-de-açúcar.

Após apaixonar-se por uma linda mulher africana que era cobiçada por seu senhor, recebeu a pena de 50 chibatadas, que equivaliam à morte, e, durante sua execução, conseguiu soltar as amarras que lhe prendiam e fugir para as comunidades secretas quilombolas que habitavam as montanhas haitianas. A versão da historiografia francesa registra que Makandal teria perdido a mão no ofício do engenho e fugido quando relaxada a vigilância sobre si enquanto trabalhava com pastoreio do gado. No entanto, esta versão evidencia a relutância dos franceses em reconhecer que um homem africano pudesse ser extremamente carismático, possuir oratória e eloquência brilhantes, inclusive em francês, e elevada autoestima. Por conta de sua grande capacidade de cura, era também conhecido como médico pelos outros escravizados. Sua popularidade era uma ameaça grande demais para os franceses, logo, precisavam difamá-lo.

Depois de sua fuga, todos os relatos narram feitos louváveis de um autêntico líder africano. Nas comunidades quilombolas já existentes, suas práticas eram invadir fazendas para tomar suprimentos e retornar aos esconderijos por rotas secretas. Porém, seus objetivos estavam acima de sua própria sobrevivência. Começou, então, a criar uma estratégia para atingir seu propósito de libertar todos os africanos e acabar com o poder dos franceses naquele território. Reunia homens e mulheres à noite em pântanos cheios de crocodilos, de forma a evitar serem apanhados. Africanos e africanas escravizados, estes, que caminhavam quilômetros para ouvir seus discursos após extenuantes jornadas de trabalho.

Makandal também é conhecido como um grande sacerdote do sistema espiritual Vodu e várias de suas profecias são conhecidas até hoje na cultura oral haitiana. A admiração dos demais por ele era tão grande que assistiam suas falas de joelhos e as mulheres batalhavam por uma chance de deitarem-se em sua cama. Um dos maiores feitos reconhecidos deste líder foi ter conseguido frear a animosidade entre africanos de aldeias rivais e feito-os trabalhar por um objetivo comum. No auge de sua organização, o número de africanos fugidos nas montanhas chegou a 20 mil, sendo estes treinados militarmente e imbuídos de pensamento político. Sua organização militar contava com cargos e patentes próprias de coordenação exemplar, fazendo com que seu comandante figure até os dias atuais como um dos únicos escravizados no mundo a criar uma organização com tamanhas relevância e complexidade. Além disso, em seu refúgio nas montanhas passaram a viver consigo seus principais companheiros, Mayombe e Teysselo, vindos da mesma região do Congo, e suas mulheres, crianças, criações e plantações.

Montanhas do Parque Nacional do Haiti
Mulheres no culto de Vodu haitiano
Ritual Vodu

Sua estratégia de disseminação em massa dos ideais revolucionários foi formar uma extensa rede de confidentes em plantações por toda a ilha. Os informantes de suas ideias eram os chamados “pacotilleurs”, africanos livres que vendiam produtos europeus de porta em porta, como caixeiros-viajantes. Somente estes homens tinham acesso livre a todos os africanos escravizados no território haitiano, já que os escravizados eram proibidos de visitarem outras plantações. Assim, Makandal utilizou-se desta brecha para enviar mensagens e agendar encontros secretos com os insurgentes.

Uma das histórias mais conhecidas sobre o sacerdote Vodu fala sobre um discurso durante o qual foram mostrados três lenços: um amarelo — que representava o povo nativo da ilha dizimado pelos europeus — ,um branco — representando o governo francês e seus aristocratas — e um preto — simbolizando o povo africano que derrotaria os franceses e vingaria os nativos assassinados. Mesmo sem apoio dos pretos da alta classe da ilha, Makandal decidiu que faria o que fosse necessário para retirar os africanos do julgo francês. Não tendo dinheiro para comprar armas e combater os 50 mil homens brancos fortemente armados, decidiu então utilizar seus conhecimentos sobre ervas obtidos na infância. Começou, assim, a lecionar para mulheres que atuavam nas cozinhas das casas grandes e a ensinar-lhes como utilizar as plantas que tinham à disposição na flora haitiana como veneno. Antes de envenenar os franceses, Makandal e seus aliados se preocuparam em eliminar os negros que propunham negociação e integração com o poder europeu na ilha. Afinal estes seriam os primeiros a trair a revolução e poderiam facilmente desorganizar os planos que estavam sendo traçados naquele momento.

Ilustração da Revolução Haitiana

Em 1758, sob suas ordens, mais de 6 mil franceses já haviam sido envenenados. Após coordenar um ataque aliando venenos às suas forças militares, Makandal foi traído e capturado. As versões, entretanto, não têm fim conclusivo e muitas delas aludem ao fato do líder, mesmo tendo sido várias vezes capturado, ter fugido de forma inexplicável. Em uma de suas fugas, o sacerdote Vodu profetizou que voltaria após sua morte como um mosquito. Curiosamente, anos depois, uma epidemia de malária espalhou-se pela ilha matando mais de 30 mil europeus e livrando africanos que já eram imunes à doença.

Estátua de Makandal no Haiti

Foi a partir da organização de Makandal, com os africanos fugidos nas montanhas, que a revolução haitiana de fato eclodiu 33 anos após seu desaparecimento misterioso nas montanhas. Antes de sua existência, qualquer pessoa que ousasse propor uma revolução como a que ele promoveu seria desacreditada. Sua contribuição para o fim da escravidão no mundo o eleva à categoria de um dos revolucionários mais importantes da história mundial.

Moeda haitiana em sua homenagem

// Texto por Morena Mariah, africana da diáspora brasileira, integrante do Ciclo Mulherismo Afreekana e graduanda em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense.

Referências:

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